Aconselhável ouvir enquanto se lê, a música que os acompanhou.
Todos nós temos na nossa posse um mundo paralelo a um outro, esses mundos sendo paralelos, nunca se vão encontrar, por mais que se prolonguem. Curioso e até fascinante é quando a ordem natural das coisas é desafiada e tais mundos deixam de ser paralelos para se cruzarem num determinado ponto, num determinado dia, numa determinada hora. E tudo começa num olhar, procedido de um choque, de um sorriso desalinhado demonstrando numa tremura dos lábios em que a timidez e uma ternura se manifesta, também ela tímida, um corar espontâneo numa pele morena.
Miguel vive na Margem Sul do Tejo, tem vinte e quatro anos, estuda numa faculdade de Lisboa, mora com os pais e gosta de ouvir música. Todas as manhãs parte solitário numa viagem constante entre a Margem Sul e o centro de Lisboa. A manhã começa com um acordar atribulado, pois, levantar-se cedo nunca foi o seu forte, e, por isso, é um acordar agitado. Passa rapidamente as mãos pela cara, lava os dentes, veste-se, não tem tempo de comer, consegue antes de sair por os phones nos ouvidos, a música de hoje será: O Primeiro Dia de Sérgio Godinho.
Cláudia vive algures na Margem Sul do Tejo, tem vinte anos, estuda numa faculdade de Lisboa, mora com os pais e adora cinema. Não gosta de se levantar cedo mas é de uma pontualidade inglesa. Dirige-se para a casa de banho, passa as mãos na cara, penteia os seus longos cabelos, lava os dentes, apressadamente veste as suas roupas, mas faz uma pausa. Ao espelho põe as suas mãos sobre os seus seios, um sinal de nascença faz uma lágrima correr a sua face, sorri e diz: "um dia". Rapidamente veste as roupas, passa a correr na cozinha a tempo de pegar numa maça, põe os phones nos ouvidos, a música hoje será: O Primeiro Dia de Sérgio Godinho.
Miguel corre pelas escadas, tropeça e quase cai. A música nos seus ouvidos faz com que observe atentamente tudo o que o rodeia, respira fundo, sente-se triste, sente-se sozinho. À entrada do transporte que o ajudará a atravessar o rio, a multidão amontoa-se à espera que uma porta se abra e todos possam entrar. Levado pelo sentimento inconstante Miguel decide ficar para último, observando incrédulo, a quantidade de pessoas que se pisam e atropelam, para conseguir um lugar à janela, decide aventurar-se e penetrar na selva de gente, sempre com a música nos ouvidos: Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida... Os olhos direccionam-se para a imensidão do rio, e um pensamento o invade. Senta-se no primeiro banco, e conseguiu um lugar à janela, partiu às 8:50.
Claúdia bate a porta com violência e corre pelas escadas, chegada ao local do transporte que a levaria na travessia do rio, já tinha partido, um certo nervosismo e frustração tomam conta dela e fazem-na ir tomar café, uma das suas perdições. Calmamente ao som da música bebeu aquele gostoso café e dez minutos depois lá estava o seu transporte. Juntou-se à selva e lutou barbaramente pelo seu lugar à janela, mas não conseguiu, contentou-se com um lugar algures no centro e sem janela, no meio de dois senhores altos e feios, semelhantes a chefes da máfia na sua vestimenta. Uma sonhadora de largo sorriso, esperançada em encontrar a felicidade, que lhe ia fugindo mas em que acredita. Sempre com a música nos ouvidos: Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida... Os olhos direccionam-se para a imensidão do rio, e um pensamento a invade, partiu às 9:00.
São 9:10, Miguel pisa a outra margem e em passo apressado dirige-se para o seu caminho, vontade súbita de beber café... "Mas eu não gosto de café"... Sente necessidade de beber um café que apesar da pressa se transforma num momento de dez minutos, são 9:20, está atrasado, aquela vontade estranha mas vigorosa fá-lo desesperar e sai a correr.
São 9:20, Cláudia pisa a outra margem em passo de corrida segue no seu caminho, hoje não pára como de costume no café, afinal já o bebeu devido ao seu atraso que sem dúvida não é hábito, mas estranhamente aconteceu.
Miguel chega ao Rossio, uma grande passadeira divide os dois lados da estrada, como se de um rio se tratasse, o sinal não fecha, os carros passam e ele quer passar...
Cláudia chega ao Rossio, uma grande passadeira divide os dois lados da estrada, como se de um rio se tratasse, o sinal não fecha, os carros passam e ela quer passar...
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida...
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida...
Miguel avista Claúdia do outro lado, Cláudia avista Miguel do outro lado.. um olhar que os petrifica mantém-nos presos de movimentos, um penetra o corpo do outro com o olhar, cada um conhece o outro pelo olhar, cada um se dá ao outro pelo olhar, cada um se despe pelo olhar. O sinal fecha mas já não interessa, tomou posição de segundo plano. Apaixonadamente hipnotizados por tamanha cumplicidade alcançada, em tão curto e distante olhar. Sensação estranha, jamais sentida, diariamente desejada.
Voltam a tomar consciência e cada um corre a tentar alcançar o outro lado, inevitável, Miguel e Cláudia chocam com violência. Os dois sorriem timidamente, olham-se nos olhos, agora de perto, nos ouvidos e sem saberem ambos ouvem: Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.
Com o choque Cláudia magoou-se e então Miguel com carinho ajuda a que se levante, e com ela se dirige para uma esplanada que existe logo ali.
Aquele foi o primeiro dia do resto das suas vidas.
Hoje passados alguns anos falámos com o Miguel, agora bem mais velho e que tal como Cláudia foi uma feliz "vitima" de um cruzamento de mundos paralelos. Sentado na sua cadeira trazida numa das suas viagens a Londres, cidade que Cláudia adorava e que visitavam quase anualmente antes do seu falecimento recente.
Encontrámos um Miguel abatido, afinal o cruzamento durou anos, mas as linhas prosseguiram. Questionámos então: Miguel como foi viver com a sua mulher?
De sorriso rasgado e como que estando a viver o que imaginava, assim respondeu:
Sabe... com ela tudo sempre foi mel.
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1 comentário:
Penso que o mel não existe, antes talvez o entendimento. Foi bom os mundos das personagem retratadas se terem cruzado, outros, dependendo das ciscunstãncias, permanecem atentamente paralelos.
Um beijo,
Patricia.
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